terça-feira, 8 de outubro de 2013

Quando vi minha mãe pela primeira vez


A porta do banheiro aberta pela vigésima vez. “Fecha essa porta, mãe”,  dizia a minha irmã, atordoada pela visão daquele corpo em uma situação vulnerável e rasteira, mas ela não dava bola. “Os incomodados que olhem para o outro lado”, respondia rindo. E era o que eu fazia, sem dificuldade. De fato, qualquer imagem muito concreta da minha mãe, como a cena no vaso, no banho, ou trocando de roupa, sempre me causou certa repulsa, como se eu negasse certas coisas a respeito de quem ela era.
Ora, minha mãe era minha mãe, era aquele ser (nem mesmo mulher, porque nunca a vi com nenhum homem) de idade indefinida, e de características mutantes: às vezes doce, quando sorrindo, às vezes amarga, quando fofocando, às vezes assustadora quando crente fervorosa e às vezes incrivelmente indefesa, como quando chorava pela morte de seu pai, mas minha mãe não era, de jeito nenhum, gostosa ou baranga, peituda ou bunduda, não era peluda ou depilada, pelo menos não pra mim.
Mesmo convivendo com ela diariamente, a mãe-ideia não passava disso: uma ideia, um conceito que eu formei e que alterava quando me era conveniente.
Em 2011, fui para a Argentina e por dois anos não vi minha mãe. Seu conceito já se havia transformado incontáveis vezes, passando de anjo a Deus, de fonte da minha força, quando me mandava dinheiro, à criatura inexistente, quando era incomodo demais pensar na família que estava distante;
Quando voltei a Porto Alegre, em 2013, levei um choque. No nosso reencontro no aeroporto eu não consegui pensar em nada a não ser “como ela está velha”. O tempo havia passado e, de fato, a diferença era notável. Não disse nada, obviamente, mas em minha cabeça o pensamento nefasto continuava: olhe essas bochechas! Quando foi que ficaram assim tão grandes, tão murchas e tão caídas? E esse cabelo? Quando foi que ficou assim tão escasso? E esses lábios? Quando ficaram assim tão finos?
No caminho do aeroporto pra casa fui descobrindo uma nova Iolanda. Uma mulher de 52 anos, na menopausa, uma mulher que, conforme ficaria sabendo mais tarde, tinha osteoporose e tomava três tipos de medicamentos diferentes por dia. Involuntariamente, segui reparando naquele corpo.
Em seus olhos, descobri um tom de cinza pavoroso e, em suas mãos, um azul sombrio das veias sobressalentes. Na barriga que antes não existia, agora havia excesso de gordura e a pele, antes invisível, agora apresentava exuberantes sinais ressecamento, encolhimento e distorções medonhas. Minha mãe era uma pessoa velha. Mas antes de velha, ela era uma pessoa.
Depois do primeiro momento de nojo, raiva e indignação, me dei conta de que, finalmente, eu havia substituído aquela mãe-ideia, aquele conceito cheio de falhas e pontos cegos que eu tinha dela, por uma mãe orgânica, mortal, real e viva naquele momento, naquele instante e só o que me restou foi abraça-la, abraçar a minha mãe metafórica e literalmente, com toda sua fragilidade e decadência e esperar que alguém fizesse o mesmo comigo quando chegasse a minha vez. Sem mistificações e sem idolatrias. Como se é, com porta aberta e tudo.



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