terça-feira, 8 de outubro de 2013

Allegro ma non troppo, un poco maestoso*

     Um dos momentos mais emocionantes da minha vida aconteceu alguns anos atrás, no belíssimo teatro São Pedro, em Porto Alegre. Depois de anos de aulas de piano e de muita música clássica, eu finalmente veria uma orquestra ao vivo. E não só isso: eles iriam tocar aquela que foi o meu hino de resistência por muito tempo: a nona de Beethoven.
A música era tocada sempre que pais, professores, e outras figuras de autoridade diziam coisas como “você não pode”, “você não deve”, “Jesus não gosta” ou quando quer que estivesse precisando escapar do tédio do cotidiano. Uma hora e dez minutos daqueles golpes de instrumentos, em especial dos violinos, me transportavam para um mundo bem distante daqui, onde nada era morno, as coisas tinham sentido e a fome de viver era como a que se tem quando sabemos que no dia seguinte é feriado.
    A excitação em ver os músicos entrando ao palco e afinando seus instrumentos antes de começarem a obra, me fez sentir como uma criança de novo: meus olhinhos brilhavam e eu dizia para a minha irmã que estava ao meu lado coisas como: “olha, olha! O de cabelo branco é o maestro!” “Olha o tamanho daquele violoncelo!” “Quem será que é o primeiro violinista?” – a ansiedade era indisfarçável. Sentei na pontinha da cadeira não muito confortável do teatro e tentei me preparar para o que estava por vir.
    Senti o primeiro movimento como senti minha infância: por vezes calma e bonita, mas sempre cercada de momentos assustadores, monstros, superstições, milagres e histeria. O segundo me fez lembrar a Priscila pré-adolescente: confiante, petulante, irritável, caprichosa, mandona, e, para a maioria, desagradável.
    O terceiro movimento me levou de volta aos 16 anos, aos livros de filosofia, à depressão, ao isolamento, à solidão e à melancolia. Lembrou-me também das coisas bonitas, mas exigentes, como meu jardim de rosas que quis começar várias vezes, mas nunca consegui terminar.
Já no quarto eu não pude pensar em nada, consegui apenas sentir e era tudo tão forte quanto um soco no estômago. Senti que estava no céu, que Deus existia e que eu era sua profetisa. Senti como se estivesse junto a três mil anjos que cantavam: “não há mais medo, você é imortal, o universo se importa com você”. Nesse momento, dei o meu primeiro grito interno (algo como um grito externo, mas tão agudo que o ouvido humano não escuta).
E depois chorei. E ri. E chorei mais um pouco, mas com vontade, como quem sabe que tem o direito de chorar, com aceitação plena.
Ao sair do teatro, pensei: “quero que a minha vida termine como terminou essa sinfonia... Quero o meu quarto movimento”. E algo me dizia que eu mesma poderia reger os primeiros compassos. Como?  Aceitando. Poderia começar por aceitar que não sou uma gênia, que não sou artista e que, definitivamente, não sou perfeita. E, mesmo assim, escrever, mesmo assim protestar, mesmo assim querer ser mãe. Não é fácil, mas algo me diz que quando se entra nesse estado de afirmação e não de negação, não se quer sair mais. Assim como não queria sair do teatro aquele dia.


*Allegro ma non troppo, un poco maestoso: literalmente, “alegre, mas não muito, um pouco majestoso”. Define o modo de ser interpretado o primeiro movimento da nona sinfonia de Beethoven.

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